Basta!

Meia Culpa, meia própria culpa, conto presente no livro O Fio das Missangas, de Mia Couto
Meia Culpa, meia própria culpa, conto presente no livro O Fio das Missangas, de Mia Couto

Pequeno Excerto retirado do conto

"Mas não, me coube a metade de um homem. Se diz, de língua girada: o meu cara metade. Pois aquele, nem meu, nem cara. E se metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele, um semimacho. Para ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro. 

Ao meu esposo chamavam de Seis. Desde nascença ele nunca ascendeu a pessoa. Em vez de nome lhe puseram um número. O algarismo dizia toda a sua vida: despegava às seis, retornava às seis. Seis irmãos, todos falecidos. Seis empregos, todos perdidos. E acrescento um segredo: seis amantes, todas atuais.

(...) 

Por isso lhe deitei o aviso: eu minto, até a Deus. Sim, Lhe minto, a Ele. Afinal Deus me trata como meu marido: um nunca me olha, o Outro nunca me vê. Nem um nem outro me ascenderam a essa luz que felicita outras mulheres. Sequer um filho tive. Que ter-se filhos não é coisa que se faça por metade. E metade eu sou. Maria Metade. Agora, o que aspiro é ficar em sombra perpétua. Condenada por crime maior: apunhalar meu marido, esse a quem prestei juramento de eternidade. É por causa desse crime que o senhor está aqui, não é assim."

Cansada, hino da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, com as vozes de Aldina Duarte, Ana Bacalhau, Cuca Roseta, Gisela João, Manuela Azevedo, Marta Hugon, Rita Redshoes e Selma Uamusse

Estou cansada - ainda agora chorei tanto

Outra noite - o terror andou à solta 

Vai e volta e promete que não volta 

Vai e volta e promete que não volta

Estou cansada - chorei tanto outra vez 

Outra vez a pensar que hoje talvez 

Haja paz - que o terror só vai não volta 

Que a tua mão não se fecha contra mim 

Estou cansada - não há fim nesta demência 

Ou ciência que preveja que me mates 

E quem bate depois chora e promete 

Que não mais a mão se levanta fechada 

Estou cansada - acho que não quero nada 

Que não seja uma noite descansada 

Sem ter medo ou chorar na almofada 

Sem pensar no amor como uma espada 

Tão cansada de remar contra a maré 

O amor não é andar a pé na noite escura 

Sempre segura que a tortura me espera 

Insegura tão desfeita humilhada 

Tão cansada de não dar luta à matança 

À dança negra que me dizes que é amor 

Que não concebes a tua vida sem mim 

E que isto assim é normal numa paixão 

E eu cansada nem sequer digo que não 

Já não consigo que uma palavra te trave 

Não tenho nada que não seja só pavor 

Talvez o amor me espere noutra estrada 

Mas tão cansada não consigo procurá-la 

Já tão sem força de tentar não ser escrava 

Já sei que hoje fico suspensa outra vez 

Outra vez a pensar que hoje talvez...

O Grito, de Edvard Munch


Fotografia de Istock
Fotografia de Istock

O medo pode ser o nosso pior inimigo, e devemos combatê-lo. Não nos podemos deixar vencer por ele, nem que para isso tenhamos que gritar, tenhamos que fugir, tenhamos que agir de uma forma menos correta (forma essa que é ditada pela sociedade), porque estamos cansados de correr, cansados de lutar, cansados de tentar...

A Maria Metade, de Mia Couto, cansou-se de suportar o marido, tal como estão Cansada(s) tantas outras mulheres, com um medo, que nem através de um Grito, desaparece, com uma desesperação que nem fingindo que não se vê e calando é possível deixar de sentir o medo constante, a sensação de andar na corda bamba sempre, de nunca sentir que há segurança... 

São vários os momentos que nos levam a gritar "Basta!", tal como a toda a opressão sentida e visível na fotografia de Istock. Ou, quem sabe se, até na pintura de Edvard Munch o Grito não será um "Basta!" de algo, que apesar de gritado (em silêncio porque não se ouve), está rodeado de medo, mas ao mesmo tempo carregado de coragem.

Designei então este grupo de Basta! porque efetivamente basta que em pleno século XXI sejam inúmeras as notícias de mulheres (e homens) que são maltratados pelos seus pares, que chegam a tomar medidas extremas para terminar com o medo, para deixar de suportar a dor, ou que muitas vezes terminam (ou lhes terminam) a vida antes de conseguirem sentir um pouco de paz (mesmo sendo uma paz a metade, porque a paz nunca surge totalmente, porque depois de tudo, aparece a meia culpa, que substitui a tranquilidade plena).

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